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Conteúdo Digital e Marco Civil da Internet

3 Abril 2020
Principalmente após o advento dos smartphones, há facilidade quase universal de conexão ao ambiente digital. A maioria dos indivíduos já adquiriu o hábito de criar e compartilhar conteúdos nas redes sociais com frequência, gerando um ambiente digital no qual os conteúdos transitam entre os usuários, com potencial de disseminação rápida, com livre acesso e publicidade para todos os demais usuários.

 A disseminação de conteúdos ocorre de forma rápida e ampla ante ao fenômeno da progressão geométrica, ou seja, um usuário insere um conteúdo que se torna imediatamente disponível no ambiente digital para toda a sua rede de contatos. Em seguida, cada contato poderá compartilhar tal conteúdo com sua rede, e daí por diante, inclusive intercambiando entre as aplicações, desencadeando a progressão, podendo o conteúdo ganhar ampla publicidade, atingindo um enorme número de pessoas rapidamente.

 É de grande utilidade a livre circulação de conteúdos no ambiente digital, ocorrendo uma democratização não apenas no acesso a diferentes meios de informação, mas também democratização na possibilidade de disseminar informação, possibilidade que antes era restrita aos grupos de comunicação formais (redes de televisão, imprensa, governo e outros). 

 Em contrapartida, resta claro o maior potencial de dano trazido por esta liberdade na produção e compartilhamento de conteúdo na forma digital, uma vez que a publicação de um conteúdo inverídico, ofensivo ou mesmo ilegal, que viole a intimidade, a privacidade, a propriedade intelectual (direitos autorais, propriedade industrial, etc.), a reputação e a honra de um indivíduo ou de entidades e empresas, poderá rapidamente ganhar publicidade, causando dano moral e material às vítimas. 

 As hipóteses de danos são variadas, como por exemplo: empresa de alimentos sobre a qual falsamente se dissemina conteúdo de descumprimento das normas sanitárias; candidato a cargo público em pleno período eleitoral sobre o qual se publica conteúdo falso afetando sua reputação; ou música sobre a qual uma pessoa declare falsamente a sua autoria.

 Neste aspecto, as vítimas devem se valer dos procedimentos legais adequados para a remoção do conteúdo do ambiente digital, e para a produção de prova lícita quanto à efetiva autoria do conteúdo e autoria da inserção no meio digital. 

 De imediato, a vítima deverá providenciar a lavratura de Ata Notarial nos termos do Artigo 384 do CPC, na qual constará a cópia do conteúdo, dando fé pública de sua postagem no meio digital. 

 Caso o conteúdo configure ilícito penal, deverá ser também lavrado o Boletim de Ocorrência, Queixa-crime, ou pedido de Instauração de Inquérito Policial, conforme o ilícito. 

 No âmbito cível, deverá ser notificado o provedor de aplicação, e interposta ação judicial requerendo ordem para que o provedor de aplicação remova o conteúdo ilícito, e para que os provedores de aplicação e de conexão forneçam os registros (IP), inclusive os registros da porta lógica de origem associada ao IP (não obstante a falta de previsão pelo Marco Civil da Internet sobre os registros da porta lógica, a necessidade técnica para prova da autoria poderá ser apresentada ao juízo, cf. precedente favorável STJ - REsp: 1777769 SP 2018/0292747-0 *). 

 Conforme o Marco Civil da Internet (Artigo 19, § 1º, da Lei nº 12.965/2014), o provedor de aplicação só poderá ser responsabilizado pelos danos após a ordem judicial para a remoção do conteúdo e o seu descumprimento, com exceção dos conteúdos que envolvam direitos autorais ou pornografia de vingança (Artigo 19, § 2º, e Artigo 21 da Lei nº 12.965/2014), nos quais a responsabilidade poderá advir desde a notificação extrajudicial. 

 Após a definição das provas quanto ao responsável pelo conteúdo, deverá ser interposta ação cível para a remoção do conteúdo ilícito pelo responsável, a retratação, a abstenção de nova conduta de divulgação do conteúdo, e a indenização pelos danos. 

 Há de se atentar que, para prevenir o perecimento das provas quanto à efetiva autoria e responsabilidade na postagem de conteúdo, as providências devem ser realizadas o quanto antes, considerando que, de acordo com o Marco Civil da Internet (Artigos 13 e 15 da Lei 12.965/2014), os provedores de aplicação são obrigados a manter os registros pelo prazo de apenas seis meses, e os provedores de acesso pelo prazo de um ano.






 O advogado Ricardo Carneiro Mendes Prado é graduado pela Universidade Federal de Uberlândia-UFU, com formação em Business Management pelo Kent Institute Australia. Atualizado em Falências e Recuperação Judicial pela Fundação Getúlio Vargas-FGV. Atualmente é pós-graduando em Direito Digital e Proteção de Dados pela Escola Brasileira de Direito-EBRADI. É sócio do escritório Fasanelli Sociedade de Advogados desde 2009, atuando nas áreas de contencioso cível, direito bancário, empresarial e recuperação judicial. * PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. INTERNET. PROVEDOR DE APLICAÇÃO. USUÁRIOS. IDENTIFICAÇÃO. ENDEREÇO IP. PORTA LÓGICA DE ORIGEM. DEVER. GUARDA DOS DADOS. OBRIGAÇÃO. MARCO CIVIL DA INTERNET. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA. 1. Ação ajuizada em 15/06/2015. Recurso especial interposto em 17/05/2018 e atribuído a este gabinete em 09/11/2018. 2. Ação de obrigação de fazer cumulada com pedido de tutela antecipada, na qual relata a recorrida que foi surpreendida com a informação de que suas consultoras estariam recebendo e-mails com comunicado falso acerca de descontos para pagamento de faturas devidas à empresa. 3. O propósito recursal consiste em definir a obrigatoriedade de guarda e apresentação, por parte da provedora de aplicação de internet, dos dados relacionados à porta lógica de origem associadas aos endereços IPs. 4. Os endereços IPs são essenciais arquitetura da internet, que permite a bilhões de pessoas e dispositivos se conectarem à rede, permitindo que trocas de volumes gigantescos de dados sejam operadas com sucesso. 5. A versão 4 dos endereços IPs (IPv4) esgotou sua capacidade e, atualmente, há a transição para a versão seguinte (IPv6). Nessa transição, adotou-se o compartilhamento de IP, via porta lógica de origem, como solução temporária. 6. Apenas com as informações dos provedores de conexão e de aplicação quanto à porta lógica de origem é possível resolver a questão da identidade de usuários na internet, que estejam utilizam um compartilhamento da versão 4 do IP. 7. O Marco Civil da Internet dispõe sobre a guarda e fornecimento de dados de conexão e de acesso à aplicação em observância aos direitos de intimidade e privacidade. 8. Pelo cotejamento dos diversos dispositivos do Marco Civil da Internet mencionados acima, em especial o art. 10, § 1º, percebe-se que é inegável a existência do dever de guarda e fornecimento das informações relacionadas à porta lógica de origem. 9. Apenas com a porta lógica de origem é possível fazer restabelecer a univocidade dos números IP na internet e, assim, é dado essencial para o correto funcionamento da rede e de seus agentes operando sobre ela. Portanto, sua guarda é fundamental para a preservação de possíveis interesses legítimos a serem protegidos em lides judiciais ou em investigações criminais. 10. Recurso especial não provido. (STJ - REsp: 1777769 SP 2018/0292747-0, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 05/11/2019, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/11/2019)